terça-feira, 31 de agosto de 2010

A liberdade de cair

“Te equilibra!”, “Segura firme o guidão.”, “Pedala com força!”, “Olha pra frente e reto!”. Essas eram as frases que Andrea escutava de seus amigos enquanto tentava, depois dos trinta anos de idade, equilibrar-se numa bicicleta de cesto na frente, dessas feitas para meninas. Ao que tudo indicava, todos ali pensavam que a dificuldade de Andréa era de caráter técnico, e lhe indicavam o modo de superá-la através da claras, simples, e, por que não dizer, óbvias instruções sobre o procedimento correto a ser adotado para conseguir se equilibrar, pedalar e levar adiante a bicicleta que conduzia. Aliás, pela inabilidade que demonstrava naquele momento, mais parecia ser carregada pela bicicleta, pois não demonstrava ter qualquer controle sobre ela. Como uma criança que tenta aprender a andar, oscilava entre momentos em que demonstrava firmeza e vaga esperança de que fosse conseguir executar aquela simples tarefa. Andréa, porém, diferenciava-se da criança por saber exatamente o que fazer. A ela, eram muito claros todos aqueles passos e nunca duvidou de que equilíbrio somado a firmes pedaladas fatalmente a faria andar de bicicleta. Guardava consigo a resposta a uma pergunta que nunca lhe fizeram: a do porquê de nunca haver tentado. Provavelmente, nunca lhe haviam perguntado porque o espaço entre a dúvida das pessoas e a sua resposta era preenchido por muitas interjeições, sempre indicando o absurdo que lhes parecia aprender algo tão simples àquela idade. Se lhe perguntassem, talvez pudessem compreender o porquê daquilo, pois sua resposta era tão simples quanto a atividade que se propunha: não queria cair. E por não querer cair, pouco se arriscava a essa possibilidade. Por sinal, poucos foram os arranhões que teve na pele até aquela idade e pretendia manter assim por longos anos. Mas aquele dia era diferente, pois acordou com vontade de cair. É como se, antes mesmo de se lenvantar da cama, tivesse caído. Pelo menos em sua sempre fértil imaginação. E naquela tarde, pôs-se, caída em pensamento, sobre a bicicleta, sabendo exatamente o que fazer e como fazer. Era movida por algo distinto de coragem e segurança. O inverso dessas sensações talvez dissesse melhor daquele momento, pois o que a fazia subir na bicicleta era a afirmação da possibilidade de ter medo, ser insegura e, mesmo assim, tentar. Neste sentido, cair ou não cair faziam parte de uma única possibilidade: andar de bicicleta. Por isto mesmo, apesar de oscilante na técnica, estava firme em seu propósito de arriscar-se cair. Inicialmente, seguia empurrada e sustentada por um amigo, que deixava claro o prazer de poder exercer aquela função. Para ele e para quem acompanhava de perto com instruções técnicas, era tudo uma grande diversão. Afinal, era engraçado observar o que ocorria. A diferença residia exatamente na posição de cada um. Enquanto os “instrutores” e o amigo que a apoiava eram observadores, Andrea participava, de modo que era parte integrante da situação. Isto fazia com que, ao invés de engraçado, o que ocorria lhe trouxesse a sensação de profunda intimidade consigo mesma, revelação de sentidos até então intocados. Diante de tal mistério sobre si mesma, cambeleante e ainda apoiada pelo amigo, deu a primeira pedalada e, rapidamente, a segunda e as que se seguiam. A cada pedalada, a sensação de ver revelada uma pequena peça do quebra-cabeça que falava de si mesma e, mais do que sua montagem completamente e perfeita, a clareza de que ele existia, sempre incompleto ou com excesso de peças. Admitir-se um quebra-cabeças que não se fecha era impensável para Andrea, sempre dona de si, com respostas e explicações para tudo de sua vida, que mais parecia um desenho de traço reto e contornos bem definidos. Uma a uma, as peças que não se encaixavam pareciam passear por todo o seu corpo, que se esforçava integralmente em produzir um movimento novo, uma revelação de seu contrário inimaginável a partir de simples pedaladas. Naquele instante, ela era a profusão de sentimentos que a habitavam e já não mais ouvia as instruções dadas. Tudo o que via e ouvia eram imagens confusas e palavras balbuciadas, como que inventadas antes mesmo de um idioma, eram sons emitidos em código indecifrável até mesmo para ela, que os pronunciava sem nem bem entender o porquê disto. Tomada pelo sentimento de ineditismo do instante, Andrea resolveu olhar a seu redor e, para sua surpresa, não mais via as pessoas que lhe acompanhavam e o único som que lhe chegava era o do vento que batia em seu rosto, que se misturava às sensações confusas de mistério sobre si mesma. Andrea não sabia até quando aquele movimento duraria ou onde iria parar de pedalar, mas tinha clareza de que no trajeto incerto que desenvolvia, começava a se questionar sobre o sentido da palavra liberdade.

5 comentários:

Nilzabeth disse...

Eu já sabia do medo dela cair e pra mim sempre foi muito claro que ela deveria ir adiante. E mesmo se caísse, levantar e começar tudo de novo!!! As instruções eram muito mais sons de incentivo!!! E deu certo!!!Mais por ela do que pela gente, é verdade, mas foi lindo!!

Unknown disse...

Taí.... gostei muito deste blog!textos profundos, poesia..Clarice, Drummond e partilhar da mesma formação profissional com vc!
Sou psicóloga, de SP/USP, com origens acentuadas na ACP, filha de Rachel Rosenberg. Hoje mais psicoterapeuta e supervisora de estágio na abordagem existencial.Grande abraço

Emanuel disse...

Olá, Gertrudes. Não a conheço, mas agradeço sua visita e fico feliz por vc ter gostado. Tb sou supervisor, aqui em Belém do Pará, em ACP. Abraço.

Unknown disse...

Puxa,Emanuel, naõ estado muito presente nos Encontros da Abordagem.. aí conheço pouca gente atualmente... a não ser os mais antigos: Miguel Mahfoud, grande amigo, Mauro Amatuzzi, Raquel Wrona, companheira de muitos anos...Segrera, que nos deu a alegria de sua presença na USP,ano passado, qdo o Serviço de Aconselhamento Psicológico, onde trabalho, completou 40anos. vc esteve aqui tb?
que pena, se não o tiver conhecido!(GÊ) Maria Gertudes

Emanuel disse...

Gertrudes, essas pessoas que vc cita são todas referências pra mim, mas nunca os conheci pessoalmente. Vou ao Latino, em Ouro Preto, mês que vem. Não estive na USP. Mas tenho ctz de que oportunidades de encontro não faltarão. Abraço