segunda-feira, 23 de janeiro de 2012
Revelação
sexta-feira, 2 de setembro de 2011
Quando não se vê tudo
segunda-feira, 18 de abril de 2011
A profecia d’Aquela Moça
Quero contar uma estória, mas não sei bem por onde começar. E o mais curioso disto é que não se trata de falta de fatos interessantes para serem contados. Envolve amor, emoção, rojões, crime, mistério... tudo para compor uma trama, no mínimo, curiosa. O problema está na protagonista, ou melhor, na pessoa com quem se passa a ação, pois ela não protagoniza nada, as coisas simplesmente lhe acontecem, como se ocorressem a um ser inanimado. Era (ou é? Não sei... não sei se ainda existe), portanto, menos consciente de si mesma que um animal. Entre um bicho e uma pedra, ela se pareceria mais com a pedra, indubitavelmente. Nutria-se de sua própria ineficiência para a vida. Nasceu, como poderia não ter nascido. Não fazia qualquer diferença. Nem para si mesma. Era de um tipo raro, com cara de nada. Por isto mesmo, é difícil encontrar um modo de contar sua estória.
Poderia começar com chuva e trovoadas. Momentos dramáticos sempre trazem este tipo de clichê no cinema. Mas a estória a que tento dar contorno nunca foi nem será transposta para a tela grande, pois de tão pequena perder-se-ia na imensidão da tela grande e não despertaria o interesse de ninguém. Poderia falar que era pobre, também, que sua condição social sempre fora desfavorecida e, como muitos anônimos que andam por aí, foi vítima do caos social que toma conta dos grandes centros urbanos no país. Mas nem isso salvaria a dignidade da história a ser narrada. Acho que devo dizer de antemão que seu maior encontro ainda seria consigo mesma, embora ela não soubesse. Se ouvisse isto, faria a cara de desentendida que se habituou a fazer diante de tudo o que lhe fosse perguntado.
Era como se nada fosse com ela, corria alheia aos fatos que lhe sucediam. Por isto mesmo, não se inquietava, não se movia rumo a nada. Digo isto porque sempre há um personagem que me desloca, que me chama à sempre violenta tarefa de dar revestimento a sua trama através de palavras. Não é o caso dela, que, de tão inexpressiva, ainda nem me mencionou o nome e nem sei se o fará. Preciso me despir de toda a vaidade de quem se atreve a narrar algo, parar de ornamentar sua tediosa vida e me resumir a contar coisas. Preciso, portanto, me livrar de mim mesmo e entender que, se der lógica e seqüência a fatos medíocres, talvez cumpra minha missão (mesmo que de modo simplório). O fato é que, como fazia toda semana, apanhou o ônibus para voltar a sua cidade de origem, pois durante a semana ocupava um quarto nestas pensões que alugam para “moças”. Encaixava-se, aliás, nesta denominação e tinha muito orgulho disto, embora este sentimento fosse silenciado, como tudo o que se passava consigo.
Pois Aquela Moça (e é assim que vou passar a me referir à anônima que me inquieta por sua falta de inquietude, e me desperta ira ao invés de pena) ia transportada a sua cidade natal, obedecendo aos desígnios de sua mãe de que todos os finais de semana deveria voltar para casa. Dizia sua mãe que nada era mais seguro para uma moça de família do que a convivência junto aos seus. E ela acreditava, embora não se sentisse ameaçada em absolutamente nada. Nem ameaçada, nem segura, por sinal. Sua existência era oca e, assim, havia espaço suficiente para que pudesse se preencher de algo. Mas só quem sente falta se completa com alguma coisa e se sentiu falta de algo um dia, deixou pra lá ou simplesmente se esqueceu, como quem se esquece do número de telefone de alguém. É que lhe disseram e ela acreditou. Como nada acontecera até então, tinha consigo que sua mãe lhe dizia algo muito correto. O caminho era o mesmo de sempre. Não sei ao certo se pelo fato de haver sempre poucas mudanças pelas bandas de onde morava, ou se pelo seu olhar, sempre inalterado mesmo que se modificasse o que via.
O fato é que era o mesmo caminho e a mesma caminhante. Sabia exatamente o que faria àquele fim de semana. Daria as mesmas respostas monossilábicas que quando perguntada sobre qualquer coisa e, quando percebesse curiosidade demais dos outros, responderia como sempre: “hã?”. Não fazia isso por não querer responder, mas porque sinceramente achava que não tinha mais pra contar. Sua vida se resumia a: “sim”, “não”, “bem” e “pois é”. No meio da estrada, porém, pessoas entraram no ônibus e anunciaram um assalto. O pânico tomou conta de todos os que ali estavam. Era nítido o terror nos rostos dos passageiros daquela sempre pacata viagem. Afinal, ninguém esperava que no meio do trajeto ocorresse um fato como aquele. O mais curioso, porém, era que o rosto d’Aquela Moça se encheu de um brilho que nunca teve, um ímpeto jamais presente em qualquer de suas ações. Enquanto todos pensavam na morte (ou iminência dela), ela pensava em nascimento, no parto de algo. E, como parto, envolvia o novo, mas traria dor ao velho. E subitamente começou a rezar, como a pedir proteção ao que estava por acontecer ali.
E antes que imaginemos que ela sairia dali para salvar quem estava sob ameaça (o que não era seu caso), adianto que o que se passava consigo em nada se parecia com esta alternativa. Mas pela primeira vez em muitos anos imaginou uma alternativa para si mesma. Viu-se fora da rota que sempre lhe fora traçada. Não pensava muito bem no significado das palavras que proferia, mas sabia que todos os que assim procediam faziam-no para abençoar algo que consideravam importante. Veio-lhe, então, a trindade e fez pensou: “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. Do alto de sua ignorância achava mesmo que os três fossem instâncias diferentes e que cada um lhe viria naquele momento como um gênio da lâmpada a lhe conceder desejos. Pensar nesta possibilidade excitava-lhe e tornava ofegante e agitada sua respiração. Sabia que seu encontro com o que imaginava serem os três passava necessariamente por ali e que, para se glorificar, para ser alguma coisa, tinha que se encontrar com o Sagrado, que apenas conhecia sob o signo de Deus.
É como se Pai, Filho e Espírito Santo fossem a ante-sala do Paraíso, lugar onde, se chegasse, se redimiria de tudo o que não fora, embora somente nesse momento em todos estes anos estivesse pensando sobre o que lhe faltou fazer. Só agora percebia que lhe faltava algo, embora não soubesse muito bem o quê e sabia que em breve algo se anunciava. Podia sentir a pronúncia da profecia de sua felicidade através de idioma que julgava ser a língua dos anjos. Isto, aliás, não fazia tanta diferença, já, que pelo desconhecimento desta palavra, provavelmente a desconheceria mesmo que pronunciada em português. Aquilo que Aquela Moça julgava “a profecia” se intensificou e passou a se pronunciar repetidamente, deixando-a em estado de graça, já então alheia a tudo o que se passava dentro do ônibus. Sua respiração ficava cada vez mais ofegante, seu corpo trêmulo e tenso, como que se preparando para uma grande descarga de energia. Se soubesse o que é um orgasmo, Aquela Moça provavelmente pensaria se tratar de um. Como era incapaz de reconhecer sentimento (menos ainda prazer), sabia apenas que algo mudara e, ao sentir a mudança de seu corpo, achou que aquilo talvez fosse o mais próximo do pecado a que chegaria durante sua esquálida vida. Num momento de lucidez que só se permite quando não há mais preocupação quanto à razão, Aquela Moça conseguiu tornar o óbvio verdadeiro, tomou ar, soltou um grito que jamais imaginou ter fôlego pra soltar, e disse seu nome como se pronunciasse o de uma divindade. Sentiu, então, um impacto que jogou seu corpo pra bem longe, junto com um estrondo, uma sensação avassaladora de estar se esvaindo de tudo o que era até então. Achava que era a visita do Pai da Santíssima Trindade. Já ouvira falar que Sua presença era forte, mas não imaginava que seria capaz de querer seu sangue. Sua visão turva deu-lhe a imagem de algo estranho e belo. Mexeu-se para alcançar o que via e veio o segundo estrondo, desta vez apenas intensificando o que o primeiro inaugurara. Já não ouvia nada, mas imaginava, por sua ignorância, que fosse o Filho que tivesse vindo ao encontro do Pai, e lhe estendia a mão, clamando por mais de si, mais da substância vermelha que colocava pra fora. Achava que aquilo era um ritual, algo que mostrava mais do que novo Aquela Moça havia se tornado. Nem ela se reconheceria, tamanha a força das águas em que estava se banhando. Foi como se por um instante deixasse de ser Aquela Moça para se tornar Moisés, abrir o Mar Vermelho e se molhar em suas águas. Quando foi agradecer, porque achava que tamanha graça deveria ser agradecia todos os dias de sua vida em mutação, achou ter sentindo o Espírito Santo em suas costas, atravessando-lhe o peito e dizendo que aquele era o dia de seu nascimento. Deixou de ser Aquela Moça e se tornou Possibilidade.
quinta-feira, 10 de março de 2011
Precisão do impreciso
O que dizer quando tudo o que tenho para lhe falar já lhe é amplamente conhecido? Que palavras buscar quando o ato de estar juntos reúne consigo todo o vocabulário antes utilizado para pronunciar verbos usados por aí aos montes pelos que se sentem enamorados? Ao que me parece, tatear palavras não é apenas folhear dicionários. Aliás, não poderia haver verbo mais feliz para isto do que tatear, pois o toque pelo que se constitui de pele talvez seja uma forma de se atingir essa verdade – muitas vezes plena e impronunciável. É que o corpo não precisa de palavras, pois elas, quando profundas, emergem do corpo e circunscrevem-no através do reconhecimento da necessidade de um limite que vise a dar compreensão. E aí reside um problema: o corpo pulsa a cada instante, vivo, intenso, fugidio, intumescido de sentidos em movimento, enquanto a palavra busca aprisionar isto que se move mais rápido do que sua própria pronúncia, como peças expostas num museu de cera. Mas por que esta disparidade? É que o corpo é vivo e a palavra é morta e somente o que é vivo capta o desenrolar de instantes mágicos, intensos e apaixonados como o que me ocorre no tempo exato em que produzo estas linhas. Fora deste campo, caminho num imenso cemitério de palavras composto pelo que um dia foi movimento e intensidade. Por isto mesmo, usar o verbo amar aqui me parece pouco, mas ao mesmo tempo necessário. Pode funcionar como uma espécie de porta de entrada, um portal que leva a caminhos outros que não os da linguagem habitual. É que a linguagem habitual é da ordem do entendimento e da compreensão. Sem isto, nada se comunica em meios ordinários. Todavia, não é ordinária a vontade de comunicar algo a um único alguém apenas e, por isto mesmo, buscar outra via de fazê-lo é dignificar um sentido que a ninguém mais precisa se tornar claro. Assim, quando digo que te amo, quero que entendas que te falo mais do que isso. Na verdade, te faço o convite de caminhar pelo inexplorado mistério do campo dos que dispensam a palavra como recurso essencial através da curiosa, intensa e apaixonada busca pelo sentido epidérmico e singular deste verbo tão ordinário. Fora do contato e do corpo, não existe verdadeiramente amar; apenas palavras.
quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011
O peso da felicidade
terça-feira, 25 de janeiro de 2011
Desejo
Caminhava pela beira da praia e, pela primeira vez em muitos anos, conseguia prestar atenção à mistura de virulência e delicadeza a que lhe remetiam as ondas do mar. Havia perdido as contas do tempo transcorrido desde que pisou naquela areia pela última vez. Era uma praia simples, longe da badalação de outros pedaços de litoral. Consigo apenas o vento, o mar e a areia, que parecia lhe insistir a formação de marcas presentes, antes que o mar as apagasse, como já havia feito com o que outrora passou por ali. Andava lenta e silenciosamente, estasiado, como quem lança a vista a algo pela primeira vez. E era exatamente assim que se via: enxergando o mar, o seu mar, de modo absolutamente inédito. Olhou fixamente para o horizonte e logo se imaginou no infinito que lhe indicava aquela paisagem. Viu-se lançado ao absurdo que só algo que lhe parecia sem começo nem fim pode provocar. Quanto mais imaginava, mais perdido se via e tinha enorme vontade de mergulhar fundo nos mistérios indicados por aquele lugar. Eufórico por sua sua fantasia, viu-se nu e pronto para mergulhar o mais longe e fundo que suportasse. E assim o fez. O tempo passava e, ao invés de falta de ar, vinha-lhe mais força a cada distância percorrida e já não se mexia às custas qualquer processo fisiológico vulgar. Parecia ser movido a desejo e ele não fazia ideia da voluptuosidade que acompanha os desejantes. Achava que desejo era apenas querer algo e agora descobria que, na verdade, poderia significar bem mais; naquele momento, desejo era, também, querer ser tragado por esse algo que se queria. Desejar, para ele, era, deliberadamente, lançar-se fundo ao além do que imaginava o corpo e ver esse mesmo corpo querer mais e o que ele desejava naquele momento era tão profundo que lhe exigia faltar o ar. Descobria, então, que sentir falta de ar poderia significar sentir-se vivo.
quinta-feira, 16 de dezembro de 2010
Presente
Improvável, diriam alguns. O encontro de seus encantos não cruzaria as ruas daquela cidade, se não fosse naquela precisa hora e naquele exato dia. E só com essa exatidão para desafiar os cálculos tão precisos que previam probabilidades. Horas antes, e nada feito. Seu tempo não seria o presente leve e intenso em que se desenrola um beijo, senão que ficaria confinada ao futuro do pretérito. E era exatamente por naquele instante não terem nem futuro nem pretérito que puderam se enxergar ali mesmo. Nem ancestralidades, nem aspirações muito além do dia seguinte, por mais que o desejo conspirasse contra a vontade de ambos e lhes demandasse uma segunda, uma terceira e quantas mais vezes fossem necessárias para se reconhecerem. Seus sentidos se conjugaram em alegria, leveza e desejo de agora, renunciando por um fugaz instante a tudo o que já sonharam um dia. Ignoravam a longevidade daquela sensação e pouco lhes importava isto. É que por ser bom, desejavam preservar o que ocorria do exato modo como acontecia. E caso os curiosos ao redor lhes perguntassem o que era mesmo que se passava ali, responderiam, como se houvessem combinado uma resposta, que se tratava de um acontecimento, simplesmente. Desses que, de tão novos, não se encerram numa denominação vulgar. Eram maduros demais para se apaixonarem assim, no primeiro olhar, mesmo que o que sentissem lhe apontasse beleza e encanto. Eram também desejosos demais para se contentarem com contemplação. A simplicidade da atualidade que se desenvolvia os impulsionava para um instante a mais nos que se sucediam e, por isso mesmo, não ousavam falar em amanhã, mesmo sabendo que ele surgiria independentemente da vontade de ambos.